terça-feira, 15 de abril de 2008

Segredava-lhe

Segredava-lhe ao ouvido bem alto:
- Mãe.
Respondia suavemente, o som desvanecia-se e demorava pelas escadas, pesados degraus, o soalho rangia com a força dos tamancos que se tornaram duros, imbuídos pela passagem gradual do tempo. Não sei bem se respondia. Perdi bastante cedo a minha mãe, deixei de ouvi-la, mas o som continuava suspenso no ar, procurando um ouvido. Os traços dela foram-se perdendo ao longo dos anos, apenas ficava uma imagem turva, lívida, sem importância alguma que ressoava nos cantos enfraquecidos da minha mente. Enfraquecidos porque necessitamos que as palavras encontrem os nossos ouvidos. Enfraquecidos porque já não estamos no andar de cima, não temos força para subir os degraus que se tornaram infinitos.
- Mãe.
Qual mãe qual quê. Já nem sei o que é ter uma mãe. Já não sei para que serve nem o que diz, nem as suas palavras quando jantávamos os dois sozinhos. Já nem sei se conversávamos futilmente, pendurados no silêncio das palavras, ou então silêncio profundo, nem palavras fúteis, nem nada. O nada existe? O nada não será a ausência de palavras, de sons, de objectos? Sozinhos, connosco no nosso canto divagando inutilmente através dos recantos mágicos da nossa memória. Grande parte da nossa memória é feita de imaginação, ligamos factos e acontecimentos que por si só não significam coisa alguma. E então criamos imagens irreais, surrealistas, dicotomias que deixam de ser contrastes e se relacionam alcançando a perfeição momentânea, esmorecendo-se logo de seguida num reboliço de nevoeiro que progressivamente nos invade.
Agora gritava:
- Pai.
Porque não o tenho, porque precisava dele. É algo que está entre nós e a morte. Passamos a ser nós na ponta da mesa. Velhinho grisalho, uma interrupção súbita da vida deixou-me isolado. Decididamente que a morte é uma puta.

segunda-feira, 7 de abril de 2008

Mil e uma folhas.

Mil e uma folhas rasgadas em cima da escrivaninha. Mil e uma, nem mais uma, nem menos uma. Mil e uma mesmo. Lá estavam quietas a ouvir os cães ladrar (porque ladram de noite quando tudo não passa de vento?) Os cães também não percebem o vento. Os cães não percebem nada. São como nós. Não percebem, mas ladram, porque têm de mostrar que até sabem. São como nós. As mil e uma folhas estavam empilhadas de tal forma que mesmo que tudo não passasse de vento, os cães continuavam a ladrar. Continuariam certamente. O que não faltam são cães a ladrar. E então as folhas estavam mal rasgadas. Agarrei um monte, não se quantas ao certo, talvez mil e uma? Não. Mil e uma não, porque ainda restavam três montes iguais ao que tirei. Tentava descortinar que palavras estariam escritas. Não percebia nada. Estavam mal rasgadas, mas estavam rasgadas o suficiente. Ao menos as palavras não são como o ladrar dos cães. Ou serão?
-Lavas-te mal os dentes.
Que importa os dentes, quando a noite cerrada transportava para o cimo da montanha a minha força?
-Lavas-te mal os dentes.
Faltava qualquer coisa que não encontrava em parte alguma, mas ouvia um sussurro inócuo. Então juntei o monte de folhas mal rasgadas, abri a janela e deixei que o vento, a única coisa que restava nessa noite, as levassem para perto dos cães que ladravam.
-Lavas-te mal os dentes.
A ideia continuava na minha pobre mente. Espíritos escondidos no imaginário contemporâneo de uma pessoa. Mas o quê? O vento parou, bolas. O monte continuava no parapeito da janela. Os cães deixaram de ladrar. Se calhar ladravam para o vento.
Assim como que do nada, um lírio branco soltou-se da paisagem, pairou lentamente puxado pelo vento que voltava a soprar, desta vez incessante. Queria ficar e não conseguia. Perdi a cabeça. Sim, perdi-a. Perdemos por muitas vezes a cabeça, custa, é pesada demais, às vezes descai, entorna-se, rebola quieta, permanece móvel. Depois recuperamos, a cabeça volta ao seu lugar, mas o lugar já não é o mesmo. O lírio branco também já não sabe onde está. Pertencia somente à paisagem, agora é como que um almocreve, nómada, numa casa que nunca lhe pertencia. Ou certamente dentro daquele armário cheio de coisas vazias. Naquela porta que teimava em estar fechada quando servia para estar aberta. Desdenhava, colocava por entre as pernas, com medo, pois eu sinto medo. A porta batia com tanta força. Recuperava o fôlego (qual fôlego?) Mas caminhava, umas vezes na direcção certa, outras vezes na direcção acertada. Sou eu que escolho o certo, o justo, o adequado. O resto não passa de lírios brancos arrastados pelo vento infernal, guiado pelo criador.
- Estou bem demais aqui! – Gritou ela, gritava porque a voz dela era baixa demais quando falava normalmente. Cruel, não sejas cruel, por favor. Não te vás embora. Alguma injustiça que cometi sem perceber? O curioso é que percebo sempre quando perpetro uma injustiça. Mas serão sempre injustiças e por contraste justiças? Parece tudo preto e branco, tem sempre de haver um ping e um pong.
- Vou-me embora.
Não vais, porque sabes que o caminho que estás a tomar, é o mesmo que o meu. És tão forte como dizes? Oculta lá essa tua faceta e dorme ao som do vento que parou, dos cães que cessaram de ladrar e dos lírios brancos que regressaram à paisagem.

quarta-feira, 2 de abril de 2008

Um verdadeiro espectro.

Um verdadeiro espectro, apenas um buraco negro envolto em densas trevas incandescentes e moribundas. Caminhava melancolicamente sugado constantemente pela força espontânea do olhar de quem não me queria ver. Perseguia o infinito e o impossível. Renascia das cinzas a qualquer momento, ocultava como queria quem queria, permanecia imóvel quando a mente descia e agarrava com todas as forças a decadência divina.
Um sonho esquecido que durou tempo demais e que acabou por se refugiar no inconsciente. Mas que coincidências são estas? Que força oculta domina desesperadamente a inteligência de um simples ser?
Então por fim, quando o meu esforço começou a ser insuficiente, refugiei-me em ti. Lá estava o teu corpo estendido, adormecido, perto das ondas que se limitam a trazer do fundo o pecaminoso. Caminhei em tua direcção, alheado de qualquer pensamento senão no poder que emanava do teu simples olhar.
Depois a beleza renasceu, a ternura, o carinho vingou por entre todos os espectros malignos. Quando se parte para nunca mais voltar, parte-se com a consciência de que os espectros foram vencidos. Parte-se com a esperança que nenhum deles possa dominar os restantes seres. Parte-se com a ideia de dever cumprido. Não importa o dever, não importa a forma como cumprimos. O que importa é que cumprimos. A legião que controlou em certos momentos o nosso destino, fraquejou.
-Qual o destino? Qual é o sinal de que tanto procuramos? – Questionei-a. Sabia que tinha a resposta para tudo.
-Não sei – Afirmou, sombria, longe de mim, longe da multidão por quem me tomava.
Somos uma verdadeira criança num labirinto sem fim.

terça-feira, 1 de abril de 2008

The Kite Runner



Como sempre acompanho as minhas mensagens com um video retirado do youtube. Desta vez calhou um trailer de um filme que vi precisamente ontem. Está absolutamente fabuloso. Daqueles obrigatórios. O papel do Hassan está divinal e ao mesmo tempo perturbador mas que nos toca lá no fundo. Fiquei com vontade de ir ler o livro, mas agora ando atarefado com Graham Green, a seguir "As Horas" de Michael Cunningham e depois António Lobo Antunes. Lá para o verão, leio e vejo de novo o filme.

Um dilema

Um dilema quase cru, nu à passagem da verdade mais bela. Sem movimento, sem busca nem procura. O simples dilema que permanece quando tudo muda à sua volta. Tornar o dilema humano para que não torne a cair na futilidade das coisas mais simples. Bom, o dilema quis, o dilema arrancou à força uma resposta. Uma resposta do mais complexo que existe não chegou. O dilema retrocedeu, abraçou outro caminho. O caminho da salvação. O sentido intrínseco do dilema vai-se perdendo ao longo do tempo, mas o problema que criou, esse não se altera. Depois há o vento, há o mar, há as rochas, há tudo aquilo que pode existir com dilemas, sem dilemas, é completamente indiferente. Por isto mesmo é que os dilemas são constantes, porque a indiferença não permite a resolução. Tomemos a indiferença como um acto usual, por conseguinte surge o dilema. Coloquemos o dilema como um factor que compreende todas as acções humanas e que aos dilemas se devem as opções. Por último inicia-se um processo de suposto livre arbítrio causado pelo dilema e pela indiferença. A indiferença aparece neste contexto como a impossibilidade de desfazer o dilema. A indiferença ligada à impossibilidade. Porque se a competência fosse a necessária, os dilemas deixariam de existir e o livre arbítrio perderia o seu sentido.
-Olá. – Cumprimentei.
-Olá. – Volveu com um olhar intenso, de um brilho incessante.
-Sentes-te sozinha? – Perguntei, procurando uma razão para tudo aquilo que imaginei no momento mais longo da minha existência.
-Sozinha no meio da multidão. – Respondeu secamente.
Senti-me quadrado naquele momento, senti que por momentos fazia parte da multidão.