segunda-feira, 7 de abril de 2008

Mil e uma folhas.

Mil e uma folhas rasgadas em cima da escrivaninha. Mil e uma, nem mais uma, nem menos uma. Mil e uma mesmo. Lá estavam quietas a ouvir os cães ladrar (porque ladram de noite quando tudo não passa de vento?) Os cães também não percebem o vento. Os cães não percebem nada. São como nós. Não percebem, mas ladram, porque têm de mostrar que até sabem. São como nós. As mil e uma folhas estavam empilhadas de tal forma que mesmo que tudo não passasse de vento, os cães continuavam a ladrar. Continuariam certamente. O que não faltam são cães a ladrar. E então as folhas estavam mal rasgadas. Agarrei um monte, não se quantas ao certo, talvez mil e uma? Não. Mil e uma não, porque ainda restavam três montes iguais ao que tirei. Tentava descortinar que palavras estariam escritas. Não percebia nada. Estavam mal rasgadas, mas estavam rasgadas o suficiente. Ao menos as palavras não são como o ladrar dos cães. Ou serão?
-Lavas-te mal os dentes.
Que importa os dentes, quando a noite cerrada transportava para o cimo da montanha a minha força?
-Lavas-te mal os dentes.
Faltava qualquer coisa que não encontrava em parte alguma, mas ouvia um sussurro inócuo. Então juntei o monte de folhas mal rasgadas, abri a janela e deixei que o vento, a única coisa que restava nessa noite, as levassem para perto dos cães que ladravam.
-Lavas-te mal os dentes.
A ideia continuava na minha pobre mente. Espíritos escondidos no imaginário contemporâneo de uma pessoa. Mas o quê? O vento parou, bolas. O monte continuava no parapeito da janela. Os cães deixaram de ladrar. Se calhar ladravam para o vento.
Assim como que do nada, um lírio branco soltou-se da paisagem, pairou lentamente puxado pelo vento que voltava a soprar, desta vez incessante. Queria ficar e não conseguia. Perdi a cabeça. Sim, perdi-a. Perdemos por muitas vezes a cabeça, custa, é pesada demais, às vezes descai, entorna-se, rebola quieta, permanece móvel. Depois recuperamos, a cabeça volta ao seu lugar, mas o lugar já não é o mesmo. O lírio branco também já não sabe onde está. Pertencia somente à paisagem, agora é como que um almocreve, nómada, numa casa que nunca lhe pertencia. Ou certamente dentro daquele armário cheio de coisas vazias. Naquela porta que teimava em estar fechada quando servia para estar aberta. Desdenhava, colocava por entre as pernas, com medo, pois eu sinto medo. A porta batia com tanta força. Recuperava o fôlego (qual fôlego?) Mas caminhava, umas vezes na direcção certa, outras vezes na direcção acertada. Sou eu que escolho o certo, o justo, o adequado. O resto não passa de lírios brancos arrastados pelo vento infernal, guiado pelo criador.
- Estou bem demais aqui! – Gritou ela, gritava porque a voz dela era baixa demais quando falava normalmente. Cruel, não sejas cruel, por favor. Não te vás embora. Alguma injustiça que cometi sem perceber? O curioso é que percebo sempre quando perpetro uma injustiça. Mas serão sempre injustiças e por contraste justiças? Parece tudo preto e branco, tem sempre de haver um ping e um pong.
- Vou-me embora.
Não vais, porque sabes que o caminho que estás a tomar, é o mesmo que o meu. És tão forte como dizes? Oculta lá essa tua faceta e dorme ao som do vento que parou, dos cães que cessaram de ladrar e dos lírios brancos que regressaram à paisagem.

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